julho 23, 2009

...


"porão em (re)forma amontoado de
quinquilharias: sentimentos antigos,
hábitos caducados, versões de outrora...
nos degraus da escada, a rolar saudade dos meus
- que meus não são -
ora no topo, de euforia,
ora ao pé dela, coup de blues.
sala de estar e não sala de ser,
porque renovar-se a si, transcende.
e, uma fachada que diz
- ou pretende -
'quem não a conhece, não pode mais ver pra crer...
quem jamais a esquece não pode reconhecer...' "

(Ojana Dominique, em Paris)

julho 21, 2009

Toquinho - Aquarela

Não recordo de já ter me sentido envolvido por essa melancolia que, hoje, se precipitou em mim e tomou conta do meu dia inteiro. É algo, assim, tão breve e intenso. Um soluço, uma vontade, uma lágrima, um nó... Incertezas, medos, dúvidas... Um pouco de tudo junto num sentimento só. Sei apenas que, em flashes de nostalgia, recordei a criança que fui. Uma imensa saudade da minha infância!
Lembrei também dessa música do Toquinho. Tão inspiradora! Uma perfeita expressão da vida em si mesma, com suas alegrias e tristezas, descobertas, realizações e decepções, a inocência pueril, o amadurecimento, despedidas, os desafios do inédito, a finitude do ser. Enfim... uma aquarela que é a vida com suas infinitas possibilidades e que, a nós, (in)felizmente, não é dado retocar.

Sem remédio


"Aqueles que me têm muito amor
Não sabem o que sinto e o que sou…
Não sabem que passou, um dia, a Dor
À minha porta e, nesse dia, entrou.

E é desde então que eu sinto este pavor,
Este frio que anda em mim, e que gelou
O que de bom me deu Nosso Senhor!
Se eu nem sei por onde ando e onde vou!!

Sinto os passos da Dor, essa cadência
Que é já tortura infinda, que é demência!
Que é já vontade doida de gritar!

E é sempre a mesma mágoa, o mesmo tédio.
A mesma angústia funda, sem remédio,
Andando atrás de mim, sem me largar!"

(Florbela Espanca)

julho 11, 2009

Para o meu lado

Você que está vindo
inesperadamente
de lá pra cá... e pra mim
para o meu lado
este lado que lhe ofereço
e que é inteiro
mesmo talvez parecendo ser parte
a parte de mim que sempre guardei
que agora sinto poder mostrar
compartilhar
sentir meu pensamento voar
certo de encontrar o seu.

É a parte intacta
que trago em mim
há muito escondida
e esquecida na textura dos dias
das horas sem o sabor da vida
que pressinto logo experimentar.

Fugir ou prosseguir?
Recuar ou arriscar?

Recordar ou esquecer?
Empolgo e me acalmo
indago sobre ser ou não
(não sei)
e pouco importa saber...
a alma sorri
a vontade escolhe tentar
e eu digo sim.

julho 06, 2009

Dá licença


Dá licença que vou chorar
reclamar da vida
queixar-me do mundo
dos transeuntes anônimos
das paixões mal entendidas
do desejo sufocado em si mesmo.

Dá licença para a insensatez
da minha fé imperturbável
da sinceridade que grita o que pensa e sente
da minha esperança teimosa
de acreditar em final feliz.

Dá licença para a mediocridade
da minha imaturidade
dos pré-conceitos pueris
das minhas carências, tolices,
medos
da resignação que me estagna.


Dá licença para a extra(e)ordinária inquietude
dos meus sentimentos
das incessantes buscas

da minha alegria triste
da angústia pungente e doída
do pranto que não deixo verter.

Dá licença para o meu silêncio
Dá licença para a minha melancolia
Dá licença para a minha solidão
Dá licença para o meu cansaço
Dá licença para mim.

julho 05, 2009

Um apólogo


"Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
– Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
– Deixe-me, senhora.
– Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
– Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
– Mas você é orgulhosa.
– Decerto que sou.
– Mas por quê?
– É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
– Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu, e muito eu?
– Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
– Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
– Também os batedores vão adiante do imperador.
– Você é imperador?
– Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em cada de baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana – para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
– Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia nada; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura para o dia seguinte; continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava a um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando... A linha, para mofar da agulha, perguntou-lhe:
– Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: – Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei essa história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: – Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!"

(Machado de Assis)

julho 01, 2009


"Talvez espante o leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto. Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar os rasgões e os remendos, a não estender ao mundo as revelações que faz à consciência; e o melhor da obrigação é quando, à força de embaçar os outros, embaça-se um homem a si mesmo, porque em tal caso poupa-se o vexame, que é uma sensação penosa, e a hipocrisia, que é um vício hediondo. Mas, na morte, que diferença! que desabafo! que liberdade! Como a gente pode sacudir fora a capa, deitar ao fosso as lantejoulas, despregar-se, despintar-se, desafeitar-se, confessar lisamente o que foi e o que deixou de ser! Porque, em suma, já não há vizinhos, nem amigos, nem inimigos, nem conhecidos, nem estranhos; não há platéia. O olha da opinião, esse olhar agudo e judicial, perde a virtude, logo que pisamos o território da morte; não digo que ele se não estenda para cá, e nos não examine e julgue; mas a nós é que não se nos dá do exame nem do julgamento. Senhores vivos, não há nada tão incomensurável como o desdém dos finados."
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(Excerto do capítulo "Curto, mas alegre", das "Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis)

"Todos os dias estarás refazendo o teu desenho.
Não te fatigues logo. Tens trabalho pra toda a vida.
E nem para o teu sepulcro terás a medida certa.

Somos sempre um pouco menos do que pensávamos.
Raramente, um pouco mais."

(Excerto do poema "Desenho", de Cecília Meireles)