março 15, 2008

"Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza."


(Poema em linha reta - autoria atribuída por Fernando Pessoa ao seu heterônimo Álvaro de Campos)

março 13, 2008

Ausente de mim

Tenho desgostado de pensar...
tanto tanto
que prefiro esquecer
(me esvaziar de mim mesmo).

É tudo tão menor e menos intenso
que a poesia parece mentir
amplificando os sentimentos
que jamais quis.


Só a vida
assim vivida
basta para me fazer acreditar
e sonhar
e esperar
e seguir...

Nada sabem de mim
nada sei do mundo
me habituei às buscas
construo-me
desconstruo-me
e não raro volto a me perder.

Quero tanto mais do que tenho tido
e os dias parecem mais atraentes
não mais tropeço nas ilusões
que outrora espalhei.


Não mais caminho em círculos
faço da vida um palco
onde ensaio minhas crônicas
e dialogo com meus antagonistas.

Nunca estou só...
(as máscaras me fazem companhia).

março 07, 2008

Sobre verdades...


Algumas conversas são (ou parecem) reveladoras... As palavras saem como se profetizassem uma sentença, uma sina, um pecado capital. Talvez, seja meu karma - todos temos um... Mas, seria uma verdade? Existe verdade absoluta ou seria uma meia verdade? Qual metade da verdade: a sua ou a minha? Possibilidades... até mesmo de estarmos certos, ou errados ambos.

"A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só trazia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era totalmente bela.
E carecia optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia."

(A VERDADE - Carlos Drummond de Andrade)

março 03, 2008

"Todo homem é uma ilha...
(toda mulher é uma ilha).
É bom ser uma ilha distante
tanto quanto é bom ser um homem.

Todo homem possui uma ponte
pois é preciso sair da ilha, seguro.
A ponte de um homem é um braço estendido.

Todo homem é um mundo.
O mundo roda no sistema egocêntrico
de suas realidades,
pequenos alumbramentos,
medos e coragens.

E quando o homem encara o mundo e se depara
– homem-mundo,
mundo-homem,
volta à ilha:
Todo homem ama sua ilha.

O homem faz o homem.
E porque fez o homem, sem nem o homem querer
aufere direitos do homem.
Diz a ele: Cresça!
E ele fica mais alto.

Diz ao homem: Trabalhe!
E ele usa o corpo.
Diz ao homem: Viva!
E ele respira e existe.
Diz ao homem: Ame!
E ele não sabe como.
Mas diz ao homem: Procrie!
E ele faz homens.

Um dia ele morre.
Se a vida foi longa para viver –
é curta para morrer –
porque o homem não fez, não escolheu,
não pensou nada.

O que faz um homem diferente de outro homem
é o que ele pensa.
O que o transforma, também,
de um simples fazedor de homens,
num criador de homens.

Todo homem é uma vontade.
E se deixa de ser vontade
teme a perda de sua posse.
Todo homem é uma consciência.
Nela inclui o seu saber
e a parte maior do não saber,
e se aceita o fato, é com ela que ele se entende.

Todo homem é seu corpo.
E sabe dele em contraste com outro corpo,
tal é a sua medida.
Como também, a medida de um homem é a sua carência:
porque é assim que ele se assume,
porque é assim que ele se liberta.

Quanto mais ele precisa
mais ele é maior. E dá.
Pede. Reivindica. Exige, quanto pode.
Luta e sofre.

Todo homem quer deixar sua ilha.
Temeroso de ter que voltar um dia, entretanto,
não destrói as pontes.
Enquanto isso, a ilha fica ali, só ilha.
A ponte fica ali, só ponte.
E o homem fica ali, só homem."


(FAZEDOR DE HOMENS - Carlos Drummond de Andrade)